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Mercado - 16/06/99
    A batalha da espuma

    Por Nelson Blecher

Sumário - Edição 690

O que está por trás do ruidoso confronto entre dois dos
maiores anunciantes globais pelo bilionário mercado de sabão em pó
EXAME
De cada 100 pacotes de sabão que as donas de casa brasileiras usam para lavar roupa, 80 saem de fábricas da Gessy Lever, a filial brasileira da Unilever. Só uma das cinco marcas da Lever - Omo - é responsável pela metade das vendas nacionais. 

E então? Existe alguém nesse mundo capaz de desafiar tamanha hegemonia? Resposta: a americana Procter & Gamble.

O Brasil é hoje o principal palco de uma encarniçada disputa que há mais de duas décadas vem sendo travada entre os dois mais poderosos marqueteiros globais. 

O que está em jogo é a futura supremacia no mercado mundial de sabão em pó, avaliado em 40 bilhões de dólares. A senha da mais recente batalha da espuma foi o lançamento simultâneo no Brasil, Argentina e Chile do Ariel, a marca líder em vendas da americana P&G. Ao trazer a novidade para o Cone Sul, a P&G fincou uma estaca em territórios até agora inexpugnáveis de sua arqui-rival, a anglo-holandesa Unilever. As marcas da Lever detêm acima de 80% das vendas no Chile e na Argentina. Nunca antes a Lever fora desafiada neste canto do mundo pela ofensiva de um competidor com o fôlego da P&G. A cada ano, a P&G investe acima de 5 bilhões de dólares para promover suas 300 marcas em 140 países. É, segundo a revista Advertising Age, o maior anunciante do mundo, seguido pela própria Unilever, com 3,4 bilhões. 
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O que parece ser uma prolongada, ruidosa e caríssima cruzada, considerando os gastos de cada parte com campanhas publicitárias e promoções no varejo, começou com um episódio hilariante. Quando ainda esboçava sua campanha de lançamento na Argentina, o pessoal da P&G foi surpreendido por uma maratona de comerciais na TV. "Ariel, Ariel, Ariel", entoava o locutor. Só que o produto anunciado nada tinha a ver com detergente para roupa. Era uma tampa de vaso sanitário produzida por uma empresa local. Em pouco tempo, o Ariel passou a ser identificado como acessório de banheiro. Alegando ter encontrado indícios de que havia ali o dedo da concorrência, a P&G denunciou a Unilever por suposto financiamento da campanha à Comissão Nacional de Defesa da Concorrência. "Sempre rechaçamos tais acusações", diz Estanislau Amaral, diretor corporativo da Gessy Lever. Segundo ele, a filial argentina tem colaborado com as autoridades para elucidar o caso. 

Este é certamente o mais ameaçador, mas não o primeiro assédio que o Omo sofre da concorrência. Trata-se da megamarca que, depois da Coca-Cola, gera mais receita para uma companhia no Brasil (acima de 500 milhões de dólares anuais). E é também, há quatro anos consecutivos, a marca mais lembrada pelos consumidores brasileiros, segundo pesquisas do instituto Datafolha. Isso não tem preço mas, tempos atrás, a Lever a avaliou em 2 bilhões de dólares. A sonora marca é a sigla de Old Mother Owl (Velha Mamãe Coruja). Foi assim, com o "m" estilizado na forma de uma coruja, que Omo surgiu na Inglaterra, nos anos 40. Com o apelo de modernidade -- o primeiro sabão em pó à base de matérias-primas sintéticas --, a novidade chegou ao Brasil em 1957, quando as donas de casa começavam a trocar o artesanal sabão em pedra e o tanque pela máquina de lavar. Tornou-se, desde então, imbatível nas prateleiras. 

Em 42 anos, nenhum outro concorrente conseguiu abalar essa liderança. O desfecho foi fatal para o último desafiante. Só para lembrar: numa campanha de 1996, o Quanto, então o sabão da Bombril, chegou a oferecer o dinheiro de volta às consumidoras não satisfeitas com os resultados de um teste de lavagem. Era uma tentativa desesperada de romper a barreira de fidelidade das consumidoras ao Omo. Em vão. Poucos meses depois, a Bombril constatara, na ponta do lápis, que enfrentar o Omo não compensava. Consumia 50% de seus gastos com propaganda, mas gerava apenas 23% do faturamento. A Bombril bateu em retirada e vendeu suas fábricas e marcas para a P&G. "É briga de cachorro louco", diz João Alves de Queiroz Filho, presidente da Arisco. "O Silvio Santos e a Globo é que deveriam fabricar sabão." Em 1998, a guerra da espuma consumiu 46,5 milhões de dólares em investimentos de mídia -- o dobro de 1994. Mais conhecida por seus produtos alimentícios, a Arisco também disputa espaço nas prateleiras de limpeza. É dona da Biju, acomodada no nicho das marcas baratas. Ainda que na periferia dessa rinha, há fortes rumores de que a Arisco será a próxima a passar para a frente o negócio de sabão. Júnior nada comenta a esse respeito. 

Desde que adquiriu, por 103 milhões de dólares, as unidades da Bombril, cada passo da P&G passou a ser detidamente monitorado pelo concorrente. Num negócio de alta rentabilidade proporcionada pela escala, em que cada ponto percentual vale acima de 10 milhões de dólares, todo cuidado é pouco. Sabe-se que executivos de uma força-tarefa da Gessy Lever foram enviados ao México para estudar as estratégias do concorrente no mercado latino-americano em que o Ariel detém a maior fatia de liderança (35%). Até as caixas registradoras também sabem que a Lever, de um ano para cá, vem intensificando negociações com as principais redes varejistas a fim de reservar as melhores frentes de gôndolas para sua marca líder. "Sobre negociações comerciais, eu não falo", diz Waldemar Machado, diretor comercial do Pão de Açúcar. "Posso dizer que o setor está batendo palmas." É fácil entender por quê. Está se repetindo na prateleira de sabão em pó o efeito Arisco. Uma estratégia bem-sucedida da Arisco perante os varejistas foi justamente lançar produtos em gôndolas dominadas por uma empresa. "É claro que, nesses casos, a chegada de um concorrente facilita as negociações e ajuda a combater preços excessivos", diz Machado. 

Por ora, o Ariel ainda é tem peso pluma na balança da montanha de pó superior a 400 000 toneladas de sabão comercializadas no Brasil a cada ano. Sua participação no bimestre março e abril, medido pela Nielsen, é de 0,6%. Uma pesquisa feita pelo Painel Ibope aponta 6,7% na semana de 3 a 9 de maio. "Se esse percentual se consolidar no período de um mês, terá sido um excelente avanço", disse a EXAME um pesquisador. 

Vai levar tempo, não vai ser fácil nem barato", diz o venezuelano Edward Jardine, presidente da filial brasileira e das operações da P&G no Cone Sul. "Mas estamos dispostos a investir o que for necessário para ter uma presença destacada nesse mercado." Oficialmente, a empresa informa estar aplicando 120 milhões de dólares neste ano e no próximo para sustentar seu lançamento. Sua meta a curto prazo é elevar de atuais 12% para 20% sua participação somadas suas duas outras marcas: Ace e Bold. 

Terá o Ariel chance de se tornar um rival importante do Omo - ou, ao contrário, será mais uma Pepsi, eterna promessa de concorrência para a Coca no Brasil? Isso só o tempo - e, é claro, as consumidoras - dirá. Mas convém prestar atenção no que aconteceu na Europa, um mercado que hoje movimenta vendas de 9 bilhões de dólares anuais. Até vinte anos atrás, ali reinavam as marcas da Unilever - entre elas o Omo. Desde então, o Ariel estabeleceu um padrão de dominância. Os pacotes da P&G chegaram a vender até 50% mais do que todas as marcas da Unilever juntas. Fez isso armando uma estratégia na contramão. Em vez de operar fábricas descentralizadas em cada país e sustentar diferentes marcas, como fazia a Unilever, construiu três megaplantas. Com isso, extraiu vantagem competitiva conferida pela sinergia de escala e de uma única estratégia de marketing no continente.

Outro fator que deve influenciar a trajetória do Ariel no Brasil é a habilidade com que a Lever reagirá ao oponente. A fabricante do Omo tem duas alternativas: abrir mão de parte da rentabilidade investindo em mais publicidade e preços promocionais ou assistir de camarote e correr o risco de perder pontos de mercado. Ao que tudo indica, a Lever já fez sua opção. "É nossa intenção fazer com que eles tenham o maior prejuízo da história de Cincinatti", afirma Antonio Kriegel, diretor de detergentes, ao se referir à cidade do estado americano de Ohio onde se localiza o QG da P&G. Segundo Kriegel, a companhia está disposta até a triplicar a verba anual de 30 milhões de dólares destinada à publicidade do Omo. "Vai sempre depender de quanto eles gastem", diz. "Não vamos deixar brecha". Um dos riscos apontados por um ex-executivo internacional da Unilever, ouvido por EXAME, é que uma eventual queda do Omo no Brasil arrastaria, como num dominó, mercados de outros países. "Já vi esse filme na Europa", afirma. "O Brasil é a jóia da coroa da Unilever na América Latina e será compelida a defender sua hegemonia." Suas cinco marcas geram vendas de 1,5 bilhão de reais ou quase 40% do faturamento da filial. 

Se experiência contar pontos, a P&G tem mais de um século e meio de estrada, com erros e acertos. Mas dificilmente terá acumulado tantas trapalhadas quanto em apenas uma década no Brasil. São erros dignos de figurar numa antologia de horror empresarial. Comprou uma fábrica de sabonetes obsoleta, a Phebo. Perdeu dinheiro tentando vender fraldas sofisticadas demais para o orçamento médio das famílias brasileiras. Cometeu falhas graves na distribuição de seus produtos. 

A P&G expatriou executivos monoglotas que preferiam tratar com clientes e fornecedores fluentes em inglês. Trocou quatro vezes de presidente nesse período. Perdeu para a Colgate o negócio do século no ramo de pastas de dentes no Brasil: a aquisição da Anakol, detentora da marca Kolynos. Conclusão: investiu 500 milhões de dólares projetando chegar ao novo milênio com um faturamento de 1 bilhão de dólares em vendas. Em 1998 só colhera pouco acima da metade desse valor. "Até aqui foi um período de aprendizado", diz Jardine. "Agora estamos atravessando grandes mudanças corporativas e, nesse novo contexto, o Cone Sul se tornou prioritário." 

Por quê? Sucede que a P&G, um gigante que fatura 37 bilhões de dólares mundialmente, tem um problemão. Precisa cumprir uma promessa feita em 1997 para os investidores de Wall Street: dobrar para 70 bilhões de dólares seu faturamento até 2005. Só que não está mais conseguindo sustentar sua histórica taxa de crescimento de 8% anuais. Em 1998, ela caiu pela metade. Sua participação em importantes segmentos vem sendo erodida. Vinte anos atrás, a P&G dominava 70% das vendas de fraldas. Hoje possui só a metade disso. Uma de suas marcas mais tradicionais, o sabonete Ivory, lançado em 1879, detém apenas 5% de participação. O Dove, marca global da Unilever, tem 20%. 

Diante disso, ampliar a receita das vendas internacionais tornou-se uma meta crucial. Potencial é que não falta. Americanos e europeus gastam 40 dólares em média a cada ano com suas marcas. Mas no resto do mundo o consumo por habitante de seus produtos é de apenas 2 dólares. Só nos países emergentes, como o Brasil, a companhia espera adicionar 1 bilhão de dólares à sua receita anual. 

Quem está conduzindo essa estratégia é Durk Jager, o novo CEO da P&G. Uma de suas primeiras decisões, ao assumir o posto em janeiro passado, foi partir a companhia em sete divisões de negócios. Cada uma opera de maneira independente. De origem holandesa, Jager, de 56 anos, já foi comparado ao general Patton por sua agressividade nos negócios. Numa recente reportagem, a revista Fortune mostrou como ele está mudando rapidamente o estilo de uma das mais conservadoras empresas americanas. Tal como Doug Ivester, o CEO da Coca-Cola, Jager pode ser visto em supermercados inspecionando gôndolas de suas marcas de fraldas e detergentes. Um dos lemas correntes na P&G nos últimos tempos é: encorajar a coragem. Outro: acelere a tomada de decisões. Para uma empresa que sempre fora engessada por manuais, isso representa uma forte mudança de hábitos. "O que interessa a Jager são resultados", diz Jardine. 

Com tudo isso, parece que a P&G está finalmente mostrando sua cara no Brasil. Erros começam a ser passados a limpo. Em dezembro de 1998, as marcas da Phebo foram vendidas à filial da americana Sara Lee e a fábrica, à carioca Granado. "Vamos focar o mercado com nossas marcas globais", diz Jardine. Certas decisões que antes demandariam enormes gastos de tempo e dinheiro com pesquisas agora têm sido aprovadas velozmente. Uma delas foi a idéia de distribuir 5 milhões de amostras grátis do Ariel para consumidores em dez diferentes canais -- como brinde de revistas femininas e listas telefônicas ao tradicional porta-a-porta em condomínios da classe média. Outra iniciativa foi um contrato milionário de patrocínio esportivo selado com o Vasco da Gama. Entre a sugestão, a negociação e a realização do projeto decorreram menos de dois meses. Esse tipo de patrocínio, segundo Jardine, é inédito na história da companhia. Com essas e outras ações de relações públicas -- como a limpeza do Vale do Anhangabaú, em São Paulo --, a P&G quer ser identificada pela população. "Cultivamos uma merecida reputação de ser uma empresa fechada", diz Jardine. "Agora queremos interagir com o mercado." Pela primeira vez, a filial participou de uma recente feira da Apas, a associação dos supermercadistas. O próprio Jardine tem acompanhado seus vendedores em visitas aos clientes. Ele encontrou um jeito de simbolizar tais mudanças no ambiente de trabalho. Os escritórios vão ganhar um novo desenho, sem divisões, para estimular o trabalho em equipe dos especialistas. Também mandou vir dos Estados Unidos miniaturas de alces de pelúcia. "Colocar o alce na mesa" é uma expressão americana que designa a disposição de enfrentar problemas. Serão condecorados com o mimo aqueles que demonstrarem atitudes nessa direção. 

E o futuro, a quem pertencerá? A resposta é duvidosa. Até agora, a balança das vendas mundiais tem pendido a favor da P&G, que afirma ser a detentora de 33% dos volumes de sabão em pó. Mas atenção: a hipercompetitiva guerra da espuma é movida a inovações. Ganha a dianteira quem for capaz de seduzir a dona de casa com produtos cada vez mais eficientes. Na corrida para produzi-los, as empresas não estão a salvo de fiascos. O caso mais estrondoso foi o Power, uma versão mais forte do Omo e do Persil, um tradicional detergente europeu da Unilever. Introduzido em 1994, o Power teve vida curta e seus estoques foram recolhidos. Motivo: danificava as roupas. 

A mesma Unilever deu a volta por cima no ano passado com um lançamento revolucionário: a versão Persil Tablet, pastilhas que se dissolvem ao tocar na água. Sucesso instantâneo. Com essa inovação, a Unilever destronou o Ariel do pódium no mercado inglês, reduziu a vantagem do concorrente americano em outros 15 países europeus e ainda obrigou a P&G a copiar a novidade. 

Xeque?


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